quarta-feira, 9 de março de 2016

A fervilhar, o feijão com carne da Dona Marta  tresanda a delícia pelo bairro. Cravinho, cominhos, um ovo, cubos de tendão e ossos a derreter lentamente conferem uma textura gelatinosa ténue, como um creme de carne pepitado com grãos. Mexe três vezes contra o relógio, dona Marta, conta até dez pré-discursivamente e repeterepeterepete três vezes umdoistrêsquatrocincoseisseteoitonove mexe e mexe e mexe, adiciona um bago de pimenta preta do tamanho dum botão que derrete em segundos e 123456789()()().

Vive sozinha desde a morte do seu filho, viajou e não voltou. A mãe ganhou o gosto à viagem depois do incidente.

Cozinha na bancada e viaja na bancada. Mármore ondeando que verte as manchas para as paredes da cozinha, ora longe ora perto, afastando-se dos seus olhos com a contagem da fervedura. Dez não são segundos, são pulsos de frio ritmado que pautam as mãos delicadas, unha do indicador negra, de Dona Marta. Há uma linha de formigas prateadas junto à casota, caminha, debaixo da mesa, abandonada. Prima pela perfeição e as estradas foçadoras tão romanas que perfeitam a cozinha. Coexistem pacificamente e chega a visita.

- dona marta por favor não se apresse, eu amanho-me.

E sentou-se junto à bancada, apreçando a culinária exemplar.
É como se não fosse.
Rigor de um relógio atómico do um ao dez.
dois
três
quatro
cinco
Maverina descansa o queixo no polegar e indicador, reflecte sobre a beleza tão inócua da cozinha anfitriã. Chão flutuante intercala com azulejo xadrez dançante nos padrões que espelham a mente de Dona Marta. Um grande tapete de arraiolos chelicando à porta da cozinha, que por agora é a entrada e a saída da Casa (salvo as janelas). Toda a casa reage. Um silêncio contemplativo, quebra-se apenas com as cantigas de marcha das formigas filtradas pelo fumo místico que realça os estalos e abafa a melodia. Gradualmente o fumo místico envolve toda a casa, escapando infeliz parte dele pela brecha na janela.

A porta grita lá do fundo mas a paz não se quebra. Agora murmura, grita, murmura, parece doente.

Dona Marta e Maverina sentam-se à mesa para comer e comem para sempre. Estalam amarelos e vermelhos e azuis e branco que remexe com as músicas prateadas e desenham na neblina interior tribos amazónicas e chalés de palha ao vento.

Bom jantar Dona Marta!

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