sexta-feira, 12 de janeiro de 2024

rascunhos de um alcoólico I

 É fundamental para o interesse da República que o cidadão, independentemente do seu enquadramento ideológico, considere antes a realidade material das decisões políticas - ou seja, quem efectivamente tem, e como, a capacidade de efectuar acções concretas. É impossível determinar algo como isto conclusivamente, mas é possível aproximar relações de causa e consequência. Para isto, é obrigatório reconhecer que a arquitetura constitucional das instituições que "regem" a vida política não reflete totalmente a forma como o poder político se distribui na sociedade. Por exemplo, o órgão legislativo e as suas normas não refletem todos os atores e mecânismos existentes para conduzir à produção de leis. Há fatores informais relativamente aos individúos que compõe estes órgãos (a corrupção sendo um exemplo), fatores procedimentais ou técnicos (a criação de loopholes por fora do debate em Assembleia, erro humano), a própria interpretação da lei vai muito além do texto produzido em Diário da República. 

Isto pode ser aplicado a qualquer outro mecânismo de poder. A autoridade em si (isto é, o exercício de um poder legítimo) é talvez o exemplo mais pertinente. Podemos dizer que as leis e normas que regem o seu comportamento e alcance de poder/autoridade não refletem a realidade material que descreve porquê e qual é a origem do seu poder/autoridade. Podemos igualmente dizer que as leis e normas que legitimam o seu poder/autoridade foram concebidas por um processo não totalmente alinhado com aquele descrito na Constituição. 

Uma nota sobre legitimidade: Legítimo é aquilo que é voluntariamente consentido pelo cidadão. É legítimo o polícia autuar infracções ao código da estrada pois, através do seu poder político, o cidadão consente à aplicação de uma série de normas que consagram àquele ofício - e por extensão ao indivíduo que o exerce - o direito a autuar cidadãos. 

Pensemos então na autoridade novamente. Parece haver uma diferenciação entre a forma como esta se exerce, e os mecanismos que a legitimam. Poderemos justificar em parte dizendo que é impossível mapear o comportamento humanos e as suas infinitas ramificações num documento. No entanto, não se deverá confundir um certo desfazamento entre a legalidade e a prática, com uma total alienação entre elas. É compreensível em determinados momentos haver uma linha cinzenta pouco explícita numa acção, mas se a legalidade simplesmente não reflete a acção prática, então há a necessidade de refletir se é a legalidade ou a prática que precisam ser revistas. Um polícia que rouba abusando do seu direito ao porte de armas trespassa a lei e precisa rever a sua prática (no caso, sendo punido com a prisão), um imposto sobre rendimentos que não se aplica a determinados quadrantes não específicos da sociedade por uma questão ténica implica uma necessidade de revisão na lei, uma vez que a prática não inflige o que foi estabelecido dentro dos parametros legitimos da lei.

Sendo por isto a legalidade falível, e sabendo que o próprio processo legislativo não reflete na sua realidade o documento constitucional, para uma República verdadeira, é necessário admitir que a legalidade não pode ser o determinante absoluto do consentimento do cidadão. Doutra forma, o consentimento do cidadão não é absoluto no que toca à legalidade da sua República. 

Poderemos considerar que o "duelo" político em democracia, entre partidos, representa esta parte viva do exercício do poder da República. Ou seja, através do processo (como debates e eleições) criamos o espaço para a evolução do sistema que regimenta a vida na República. Assim sendo, o cidadão participa legitimando através do voto os atores que representam a parte viva da República. Isto leva a duas questões: 1) Não é absolutamente legitimo que o voto seja o único fator que determine o poder dos atores nas Repúblicas, e o seu oposto; 2) A realidade não reflete duma forma linear a relação do voto com o poder de representar o cidadão nas instituições políticas para as quais ele votou.

Quanto ao primeiro ponto, pensemos num sistema eleitoral fraudulento. Quanto ao segundo ponto, pensemos no acesso ao poder através de máquinas partidárias ao invés de serem meramente as eleições que determinam o acesso a um cargo legislativo. 

Se em todo o exercício do poder existir esta nuance, é importante reconhece-la. Para um cidadão isto quer dizer: não se deve menosprezar o exercício prático do seu poder apenas devido à sua apreciação da lei. Bem pelo contrário, a prática da cidadania tende a ser muito mais circunscrita à sua realidade material do que a uma determinada orientação geral (por exemplo, ideológica) que descreva a construção das leis. 

Pensemos na óptica de um adversário da República. Como qualquer agente ofensivo, este irá buscar vantagens e oportunidades. Neste caso concreto, provavelmente nestas lacunas entre o poder real e o poder legal existirão oportunidades para tentar co-optar algum instrumento de poder real, ou de manipulação do poder legal, ou de ambos. A Máfia é um exemplo do que acontece quando uma facção adversária à República a viola, criando vínculos de poder real expropriando a autoridade inclusivamente a agentes políciais, políticos, juizes, etc. É fácil enquadrar o exemplo da Máfia pela quantidade de documentação produzida, mas enquanto a co-optação é ativa e o cidadão não tem conhecimento, este tipo de diagnóstico torna-se bastante mais difícil. 


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